Com o advento da tecnologia é cada vez mais fácil e rápido para um comerciante identificar a situação de clientes junto aos Serviços de Proteção ao Crédito através do número do Cadastro de Pessoa Física (CPF), ou para a Justiça Eleitoral verificar a legitimidade do Título de Eleitor de determinado cidadão. Tudo isso é possível graças à utilização de um banco de dados nacional, onde os documentos podem ser verificados facilmente através da internet. Porém, essa facilidade não está disponível para todos os documentos civis que o brasileiro tem a obrigação de possuir.

O documento de identificação mais solicitado pelo comércio é o Registro Geral (RG) e em muitos casos uma pessoa pode adquirir crédito em algum estabelecimento apenas com a apresentação deste documento. O problema é que, como não há um sistema de consultas para conferir a veracidade da carteira de identificação, muitas vezes o comerciante pode estar sendo vítima de um golpe que está crescendo no Brasil: a fraude no comércio com o roubo ou a falsificação de documentos de identificação.

A emissão do RG é uma competência de cada Estado e os institutos de identificação armazenam esses dados de forma isolada, sem o compartilhamento com outros Estados ou a União. Essa falta de compartilhamento de informações possibilita que uma pessoa possa tirar um RG em mais de um Estado e com isso possa aplicar fraudes financeiras ou outros tipos de crimes. A solução para o problema estaria na criação de um sistema de identificação nacional, com o registro de dados armazenados eletronicamente e que possam ser consultados de forma rápida e segura. Essa alternativa está prevista em lei desde 1997, e chegou a ser anunciada pelo ex-presidente Lula em 2010, mas a sua efetiva implantação nunca foi iniciada.

Facilidade na fraude torna comércio mais rígido

A facilidade com que a fraude é aplicada está fazendo com que os comerciantes sejam cada vez mais rígidos na aprovação de crédito para os seus clientes, muitas vezes dificultando a concretização do negócio, o que prejudica tanto o estabelecimento, quando ao público consumidor. O empresário Marcos Pinto destaca que a adoção de um documento de identificação nacional nos mesmos moldes que já são empregados na Carteira Nacional de Habilitação e que está sendo utilizada no recadastramento do Título Eleitoral traria segurança e mais eficiência para a sociedade como um todo: cidadãos, empresas e administração pública. “O recadastramento do título de eleitor é um exemplo da viabilidade desta solução. É um projeto bem sucedido. O cadastramento é organizado, eficiente e rápido mesmo envolvendo o cadastro de muitas dezenas de milhões de pessoas”, ressalta.

O empresário destaca ainda que apenas a emissão de um documento de identificação nacional não garantiria a redução do número de fraudes, pois seria necessário que um banco de dados estivesse disponível na internet para ser consultado, comprovando a idoneidade do portador do documento. Além disso ele enumera outros pontos que seriam importantes para aumentar a segurança e dificultar esse tipo de fraude. “O comércio, em geral, e os cidadãos são vítimas de fraudes envolvendo a falsificação de documentos de identidade. A fraude mais frequente é o roubo do documento de uma pessoa idônea e adulteração da foto. Há muitos fatores que podem aprimorar a segurança, como a impressão da foto do cidadão no próprio documento, a digitalização das impressões digitais, foto e assinatura. Todos são recursos triviais, disponíveis no mercado a custos relativamente baixos”, destaca.

De acordo com Maria José, chefe de crediário das lojas Pintos, em Teresina, não há muito o que ser feito para inibir as tentativas de fraude através da utilização da carteira de identidade. “Além de observar as características que conhecemos dos documentos, a verificação da coerência das outras informações do cadastro é importante. São muitas variáveis e como não há uma base de dados para pesquisar a veracidade dessas informações, o nosso trabalho fica limitado. Isto daria segurança para empresas e clientes, pois ambos são vítimas nas fraudes”, relata. Maria José lembra ainda que por conta da falta de meios que garantam a originalidade da carteira de identidade, há uma maior rigidez durante o processo de aprovação de crédito dos clientes, o que, em alguns casos, gera uma certa insatisfação.

Além das perdas ocorridas com a concretização de uma fraude, o comércio e os clientes também sofrem prejuízos por conta do aumento da exigência dos procedimentos para aprovação de crédito. Muitas vezes um cliente idôneo desiste de comprar por achar que há muita burocracia para a loja aprovar o seu crédito. Maria José explica que esse tipo de atitude é comum em alguns clientes, mas que o pior problema, para ambas as partes, é o risco de fraude pela falta de uma base de dados pública, confiável e disponível para todos.

Roubo de carteira de identidade facilita golpes no comércio

O empresário Marcos Pinto informa que o tipo de fraude mais frequente é o roubo do documento de uma pessoa idônea e a adulteração da foto, o que é muito difícil de ser identificado. Além de crimes no comércio, o golpista em posse de um documento falso pode aplicar muitos outros pequenos e grandes golpes, como alugar imóveis, assinar contratos, comprar carros, receber benefícios, entre outros. Por isso se destaca a importância de que os dados com o documento de identificação dos brasileiros fiquem disponíveis em uma plataforma confiável que possa ser consultada.

Uma pesquisa encomendada pela Serasa Experian revelou que durante o ano de 2012 houveram 2,14 milhões de tentativas de golpes no comércio. Os dados revelam que criminosos utilizaram dados falsos ou informações roubadas de suas vítimas para aplicar golpes como a emissão de cartões de crédito, compra de automóveis, abertura de conta corrente, financiamento de eletrônicos, compra de celulares, entre outros. A mesma pesquisa revelou que estão mais suscetíveis a esse tipo de fraude as pessoas que perderam ou tiveram os seus documentos roubados.

No Piauí a Delegacia de Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Relações de Consumo (DECCOTERC), é a responsável por investigar esse tipo de prática criminosa. Segundo o delegado Roberto Carlos Sales da Silva, houve um crescimento do número de registros de fraudes no comércio piauiense nos últimos anos. “A prática criminosa mais comum são as fraudes utilizando a carteira de identidade, que pode ser roubada ou até mesmo emprestada. O golpista muitas vezes pega esses documentos de pessoas menos esclarecidas e as utiliza para aplicar golpes”, informa.

O delegado orienta que há algumas atitudes comuns que os comerciários podem observar para identificar uma tentativa de golpe. “A pessoa que tenta aplicar golpes como este geralmente quer comprar rápido e já ir embora, geralmente ela demora pouco na loja, não escolhe muito e está nervosa. Além disso, o comerciário deve prestar bastante atenção na foto da carteira de identidade e na data de nascimento, pois muitas vezes esses criminosos não atentam para a idade que está impressa e há casos em que a carteira informa que a pessoa tem 60 anos e o golpista tem apenas 40, ou seja, dá para identificar dessa forma”.

O crime de utilizar a identidade para aplicar fraudes econômicas é enquadrado no crime de estelionato, que segundo o Código Penal Brasileiro (Título II, Capítulo VI, Artigo 171) é descrito como o ato de “obter, para si ou para outro, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”. A pena para a prática de estelionato pode ir de um a cinco anos, mais multa. O delegado Roberto Carlos informa que a DECCOTERC está investigando, somente em Teresina, 16 casos de golpes onde foram utilizadas carteiras de identidade.

O ideal seria que o Brasil adotasse um documento de identidade único e nacional, utilizando recursos de biometria e digitalização do processo, como os utilizados na emissão da Carteira Nacional de Habilitação e no recadastramento do Título de Eleitor. Além disso, essa base de dados deve ser pública, disponível na internet para toda a população. Essa uniformização seria importante não apenas para o comércio, mas para todo tipo de serviço prestado à população, como o cadastro na gestão do Sistema Único de Saúde. Assim o número da identidade nacional seria usado como a chave de todos os processos públicos e privados, com a confiabilidade de uma base de dados acessível.