A desoneração da folha de pagamentos, que foi tornada permanente pelo governo federal no fim de maio deste ano, beneficiou mais empresas e trabalhadores do setor de serviços do que da indústria, de acordo com estudo dos economistas José Roberto Afonso e Vilma Pinto, pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV).

Os economistas analisaram a participação de cada setor no incentivo, que alterou a base da contribuição previdenciária de um percentual de 20% sobre a folha para alíquota de 1% a 2% sobre o faturamento, a depender do ramo de atividade. Os pesquisadores também calcularam a renúncia por empresa e por número de trabalhadores.

A análise foi feita a partir da estimação do custo da renúncia tributária por atividade econômica para fevereiro, divulgada pela Receita Federal, primeiro mês em que houve a troca de base de contribuição para todos os 56 setores contemplados atualmente.

A desoneração da folha de pagamentos foi desenhada pelo governo dentro do contexto do Plano Brasil Maior, e tinha por objetivo reduzir o custo de mão de obra e elevar a competitividade de alguns segmentos industriais mais expostos à concorrência externa. Os primeiros setores beneficiados, ainda em 2012, foram confecções, couro e calçados, call center e serviços de tecnologia da informação.

Passados dois anos, e com inclusão de mais 52 ramos de atividade, entre eles a construção civil e o comércio varejista, o levantamento sugere, porém, que os principais segmentos beneficiados estão ligados à prestação de serviços.

A estimativa mensal de renúncia com o benefício, de acordo com o estudo, é de R$ 1,9 bilhão, já levando em consideração o impacto proporcional do décimo-terceiro salário. Desse total, 44,8% correspondem a um alívio de carga tributária para a indústria de transformação, enquanto somados, construção (11,8%) e serviços (42,9%) superam esse porcentual.

Em relação ao número de empresas e de trabalhadores beneficiados pela medida, os ramos ligados à atividade manufatureira também ficam para trás. As empresas que passaram a recolher uma porcentagem sobre faturamento, em vez de 20% sobre a folha, empregavam em fevereiro 12,7 milhões de trabalhadores, de acordo com as informações da Receita. Desse total, apenas um terço trabalha na indústria de transformação, contra 53% no setor de serviços e 13% na construção civil.

Entre os ramos de atividade desonerados com maior contingente de trabalhadores estão transporte terrestre, com 2,6 milhões de vínculos, ou 20,6% do total, seguido por serviços de escritório (9,2%), comércio varejista (7,3%) e obras de infraestrutura (7,1%).

Segundo os autores do estudo, estas proporções deixam claro que a forma adotada para o regime de desoneração da folha não pode se qualificar como uma medida para beneficiar o emprego na indústria, se a prioridade fosse o número de postos de trabalho. “Com os novos setores desonerados que passaram a recolher contribuição sobre a folha em janeiro deste ano, a indústria perdeu peso. Há grande distância entre resultados e a justificativa inicial do benefício”, diz Afonso.

A desoneração foi idealizada como uma medida de política industrial para melhorar a competitividade do setor, mas beneficiou segmentos que não estão expostos à concorrência internacional, como a construção civil. Afonso nota que, mesmo dentro da indústria, os ramos de atividade para o qual o incentivo é mais importante são aqueles com maior grau de organização, mais intensivos em capital e que pagam salários maiores.

Esse fator fica mais visível quando se olha a renúncia média por vínculo empregatício em cada segmento. Levando em conta a renúncia referente a janeiro de 2014, observada em fevereiro (sempre estimando o impacto proporcional do décimo-terceiro salário), cada trabalhador dos setores desonerados custa, em média, R$ 148 para o Tesouro Nacional. Na indústria de transformação, que tem trabalhadores mais qualificados – e, portanto, mais bem remunerados -, esse valor é maior, de R$ 200 por trabalhador, contra R$ 119 no setor de serviços.

As maiores desonerações, porém, não estão nos segmentos mais intensivos em mão de obra, e sim entre aqueles que, no geral, são mais intensivos em capital, afirma Afonso. É o caso de outros equipamentos de transporte, no qual cada empregado significa R$ 914 de renúncia mensal. No mesmo grupo também estão atividades de rádio e televisão (R$ 902), transporte aéreo (R$ 682), produtos farmacêuticos (R$ 658) e indústria de veículos automotores (R$ 331).

Entre os ramos de atividade originalmente contemplados pela desoneração da folha de pagamentos, os valores estão próximos, ou até abaixo, da média para a atividade manufatureira. Em confecção de artigos de vestuário, o custo para o Tesouro por vínculo empregatício é de R$ 232, enquanto no setor têxtil a renúncia é de R$ 198 e na preparação e fabricação de artigos de couro atinge R$ 213.

Embora sejam mais relevantes como porcentagem da renúncia total, para o setor de serviços o benefício por vínculo empregatício é menor, já que é um setor que emprega mais e paga salários menores do que a indústria. Na prestação de serviços de transporte terrestre, o benefício que a empresa tem por trabalhador é de apenas R$ 66, e nos serviços especializados de construção, R$ 88.

O modo como a desoneração da folha de pagamentos foi desenhada também torna o sistema tributário mais regressivo, avalia Afonso. De acordo com a análise feita pelos pesquisadores com base nos dados da Receita, o número de empresas beneficiadas pela medida é, no fim das contas, pequeno.

A quantidade de empresas contribuintes abarcadas pela desoneração era de 72,3 mil em fevereiro deste ano. É um contingente pequeno perto do universo de estabelecimentos que apresentam guia de recolhimento para a Previdência Social – 4,5 milhões, de acordo com o último dado disponível (2012). Mesmo se consideradas as empresas que não participam do Simples e que não entram na desoneração, os beneficiados são apenas 3,7% do total.

Os dados ainda sugerem que as maiores empresas são as principais beneficiadas. O valor médio da renúncia por contribuinte em fevereiro, por exemplo, foi de R$ 23,7 mil. O presidente da Confederação Nacional de Serviços (CNS), Luigi Nese, avalia que a medida beneficiou mais as grandes do que as pequenas empresas do segmento.

“Os estabelecimentos em que a folha de pagamentos representa 10% ou 15% do faturamento acabaram onerados com a troca de base de contribuição”, diz Nese. Essa realidade, afirma, é comum em empresas iniciantes do setor de tecnologia da informação, que contam com poucos funcionários, mas com faturamento mais elevado.

Nese avalia que o benefício deveria ser optativo, e não compulsório, ou mais linear, com redução da alíquota de contribuição sobre a folha, o que beneficiaria igualmente todas as empresas. Em sua avaliação, há pouca isonomia na seleção de alguns setores beneficiados, enquanto a maioria das empresas não foi desonerada.

Procurado, o Ministério da Fazenda não retornou ao pedido de entrevista do Valor.

Medida não corrige distorções, diz professor

A ampliação da desoneração da folha de pagamentos para 56 ramos de atividade foi uma tentativa do governo de impulsionar o crescimento econômico, diante da baixa resposta do setor industrial aos estímulos implantados, avalia Nelson Marconi, professor e coordenador do Fórum de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo. Nesse sentido, porém, a medida é apenas paliativa e não corrige as distorções macroeconômicas, como juros altos e câmbio valorizado, mais importantes para explicar o mau desempenho do setor industrial.

Para o professor, um ajuste fiscal, com redução dos gastos de custeio da máquina pública, seria o caminho mais eficiente para corrigir essas distorções. Em sua avaliação, porém, o ajuste não é incompatível com a desoneração, já que haveria espaço para aumentar a eficiência da máquina pública sem necessariamente precisar reduzir incentivos.

Em sua avaliação, a desoneração da folha é importante por se tratar de um alívio de custos para as empresas e, neste sentido, a escolha de setores não é tão relevante. “Claro que a indústria, pela situação atual, precisa do benefício mais do que serviços, mas nos dois casos há redução de custo de mão de obra”.

Para José Roberto Afonso, economista do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV), a desoneração foi um incentivo caro e houve pouca discussão sobre seus custos e benefícios. Para o economista, há poucas informações disponíveis em relação à evolução do emprego, salário, exportações e participação no mercado interno nos setores que foram desonerados.

“Tínhamos que ter respostas para essas questões antes de perenizar o incentivo”, diz Afonso, de modo que houvesse avaliação mais precisa sobre quais setores precisam ou não do benefício. A princípio, o benefício expiraria no fim deste ano, mas foi tornado permanente no fim de maio.

Em sua avaliação, os setores originalmente atendidos pela medida, como calçados e confecção, correspondem a um valor ínfimo da desoneração como um todo. Por outro lado, a renúncia para segmentos como o comércio varejista e a construção civil é proporcionalmente mais relevante, mas esses segmentos não estão expostos à concorrência externa. “A desoneração melhora a situação de custos desses segmentos, mas a um peso elevado para o Tesouro Nacional”, afirma Afonso.

Para o economista, medidas mais horizontais, como a reforma do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), seriam mais interessantes como incentivo para atividade a um custo fiscal parecido ou até menor.

Para Mansueto Almeida, especialistas em contas públicas, a renovação do benefício traz uma dificuldade fiscal adicional em um cenário que já é bastante complexo, o que pode significar nova rodada de aumento da carga tributária nos próximos anos.

Segundo estimativas do próprio Ministério da Fazenda, o Tesouro Nacional deve abrir mão de R$ 30 bilhões com o benefício em 2017. De acordo com estimativas de Afonso e de Vilma Pinto, também pesquisadora do Ibre, a desoneração da folha de pagamento deve ficar em torno de R$ 22 bilhões neste ano, o equivalente a 0,4% do PIB.

Mansueto ainda enxerga dois outros problemas com essa política industrial. Ao alterar a base de contribuição para a Previdência da folha para o faturamento, o governo deu um passo atrás na tentativa de reduzir a cumulatividade do sistema tributário brasileiro. Com a medida, avalia, fica mais difícil partir para um tributo sobre o valor agregado.

Além disso, com o fim do bônus demográfico, o menor crescimento da força de trabalho, que já começa a aparecer como uma restrição ao crescimento da economia, tende a se acentuar. Ao aumentar incentivos para contratação de mão de obra, mesmo em um período de crescimento econômico mais baixo, o governo acaba contribuindo para que essa tendência fique ainda mais acentuada.

Segundo Mansueto, os custos da medida superam os benefícios e é possível que, por causa da restrição fiscal e do mercado de trabalho apertado, o governo se veja obrigado a rever a medida daqui a alguns anos.

Valor Econômico